30 de janeiro de 2019

O retrato de Dorian Gray - guião

"Não há nada que a Arte não possa exprimir"


1. Acerca do autor


2. A obra

Personagens
  • https://www.behindthename.com/





O retrato de Dorian Gray - cap. I


Capítulo I



Por todo o atelier pairava o aroma intenso das rosas e quando a branda aragem estival corria por entre as árvores do jardim, entrava pela porta a fragrância carregada do lilás, ou ainda o perfume delicado do espinheiro de floração rósea. Estendido no divã de bolsas de seda persas, a fumar, como era seu costume, cigarro após cigarro, Lord Henry Wotton só conseguia vislumbrar do seu canto as flores adocicadas e cor de mel de um laburno, cujos ramos trémulos pareciam mal poder suportar o peso de beleza tão fulgurante. De vez em quando, através dos cortinados de tussor de seda que cobriam a enorme janela, via passarem velozes as sombras fantásticas das aves, que produziam como que um momentâneo efeito japonês, o que o levava a pensar naqueles pintores de Tóquio, de rostos cor de jade e pálidos, que, servindo-se de uma arte que é necessariamente imóvel, procuram transmitir a sensação de rapidez e movimento. O zumbido lento das abelhas, que abriam caminho por entre a relva crescida, ou voavam com monótona insistência à volta das hastes douradas e poeirentas de uma madressilva desgarrada, parecia tornar o silêncio mais opressivo. Ao longe, os vagos ruídos de Londres soavam como o bordão de um órgão longínquo.
No centro do atelier, afixado a um cavalete vertical, estava o retrato em corpo inteiro de um jovem de beleza invulgar. À sua frente, sentado a uma certa distância, estava o autor, Basil Hallward, cujo desaparecimento súbito, há alguns anos, havia provocado, na altura, grande alvoroço e dera origem às mais surpreendentes conjecturas.
Ao olhar a figura grácil, formosa, que com tanta perfeição registara através da sua arte, assomou-lhe ao rosto um sorriso de prazer, que parecia aí querer demorar-se. Mas sobressaltou-se repentinamente e, fechando os olhos, colocou os dedos sobre as pálpebras, como se tentasse aprisionar dentro do cérebro um sonho estranho do qual receava despertar.
— É o seu melhor trabalho, Basil, o melhor que já fez – disse Lord Henry, languidamente. – Não pode deixar de o enviar à exposição de Grosvenor do ano que vem. A Academia é demasiado grande e demasiado popular. Todas as vezes que lá fui, ou as pessoas eram tantas que não conseguia ver os quadros, o que era horrível, ou os quadros eram tantos que não conseguia ver as pessoas, o que era ainda mais horrível. Grosvenor é realmente o único local.
— Não penso enviá-lo para lugar nenhum – respondeu ele, atirando a cabeça para trás, naquele seu jeito peculiar que, em Oxford, provocava o riso entre os amigos. – Não, não vou enviá-lo para lugar nenhum.
Lord Henry arqueou as sobrancelhas e, estupefacto, olhou para ele através das ténues espirais azuis de fumo que subiam em volutas caprichosas do seu cigarro saturado de ópio.
—  Para lugar nenhum? Mas, meu caro amigo, porquê? Tem algum motivo? Vocês, os pintores, são uns indivíduos estranhos! Fazem tudo para ganhar fama e, assim que a têm na mão, parecem querer atirá-la fora. É um disparate, pois só há uma coisa no mundo pior do que falarem de nós: é que de nós ninguém fale. Um retrato como este colocá-lo-ia muito acima de todos os jovens de Inglaterra e faria muita inveja aos velhos, se é que os velhos são capazes de qualquer emoção. [ï p. 5]
— Sei que vai rir-se de mim – respondeu ele –, mas de facto não posso expô-lo. Pus nele demasiado de mim mesmo.
Lord Henry estendeu-se no divã e desatou a rir.
— Eu bem sabia que você havia de rir. Mas seja como for, o que eu disse é a pura verdade.
— Demasiado de si mesmo!? Palavra de honra, Basil, não sabia que era tão vaidoso. Na verdade, não consigo ver qualquer semelhança entre você, com esse rosto rude e enérgico, o cabelo escuríssimo, e este jovem Adónis, que parece feito de marfim e pétalas de rosa. Ora, meu caro Basil, ele é um Narciso, enquanto você... Bem, é certo que o meu caro amigo tem um ar intelectual, e tudo o mais. Mas a beleza, a verdadeira beleza, acaba onde começa a expressão intelectual. O intelecto é em si uma forma de exagero e destrói a harmonia de qualquer rosto. Assim que nos sentamos a pensar, ficamos todos nariz, todos testa, ou outra coisa horrenda. Veja esses homens que triunfam em qualquer profissão intelectual. São completamente hediondos! Com exceção, evidentemente, dos homens da Igreja. Mas é que os da Igreja não pensam. Um bispo continua a dizer aos oitenta anos aquilo que lhe mandaram dizer aos dezoito e, como consequência natural, ele mantém-se sempre uma pessoa encantadora. Esse seu jovem amigo tão misterioso, cujo nome você nunca me revelou, mas cujo retrato me deixa verdadeiramente fascinado, nunca pensa. Tenho absoluta certeza. É uma dessas criaturas belas, sem inteligência, que devia estar sempre aqui no Inverno, quando não temos flores para contemplar, e sempre aqui no Verão, quando necessitamos de algo que nos refresque a inteligência. Não se sinta lisonjeado, Basil, você não se parece nada com ele.
— Você não me compreende, Harry – respondeu o artista. – É certo que não me pareço com ele. Sei isso perfeitamente. Até nem gostaria de parecer- me com ele. Encolhe os ombros? Estou a dizer a verdade. Há em toda a superioridade física e intelectual uma certa fatalidade, aquela fatalidade que parece perseguir ao longo da história os passos vacilantes dos reis. É preferível não sermos diferentes dos outros. Os feios e os estúpidos são os que mais ganham neste mundo. Podem ficar despreocupadamente embasbacados a olhar. Se não conhecem o triunfo, pelo menos também não conhecem a derrota. Vivem como todos nós devíamos viver - impassíveis, indiferentes, e sem inquietações. Não trazem o mal a ninguém, nem o recebem de mãos alheias. A sua posição social e a sua fortuna, Harry, a minha inteligência, seja ela o que for, a minha arte, valha ela o que valer, a beleza de Dorian Gray... havemos todos de sofrer por aquilo que os deuses nos concederam... sofrer terrivelmente.
— Dorian Gray? É assim que ele se chama? – perguntou Lord Henry, atravessando o atelier em direcção a Basil Hallward.
— É. Mas não pretendia dizer-lho.
- E por que não?
- Bem... Não sei explicar. Quando gosto imenso de uma pessoa, nunca digo a ninguém o seu nome. Seria como que entregar uma parte dela. Habituei-me a manter o segredo. Parece ser a única coisa que nos pode tornar a vida moderna misteriosa, ou maravilhosa. A coisa mais banal adquire encanto simplesmente quando não revelada. Quando me ausento da cidade, nunca digo aos da casa para onde vou. Perdia todo o prazer, se o fizesse. É um hábito tolo, confesso, mas, de certo modo, traz algum romantismo à nosa vida. Você deve achar tudo isto um disparate. [ï p. 6]
— De modo nenhum – contestou Lord Henry –, de modo nenhum, meu caro. Você parece esquecer-se de que sou casado, e o único encanto do casamento é a necessidade absoluta de uma vida de engano recíproco. Nunca sei onde está a minha mulher, e ela nunca sabe o que eu faço. Quando nos encontramos, o que acontece uma vez por outra quando jantamos fora ou visitamos o duque, contamos um ao outro as histórias mais absurdas, e com o ar mais sério deste mundo. A minha mulher tem muito jeito para isso, muito mais do que eu. Nunca confunde as datas, ao passo que eu confundo-as sempre. Mas se me apanha em falta, nunca protesta. Às vezes, eu bem gostaria que o fizesse, mas ela limita-se a rir de mim.
— Detesto o modo como você fala da sua vida conjugal, Harry – observou Basil Hallward, caminhando em direcção à porta que dava para o jardim. – Considero-o um excelente marido que se envergonha das suas boas qualidades. Você é um indivíduo extraordinário. Não prega a moral, contudo não comete más ações. Esse seu cinismo não é mais do que uma pose.
— A naturalidade não é mais do que uma pose, a pose mais irritante que conheço - exclamou, a rir, Lord Henry.
E os dois jovens saíram juntos para o jardim e instalaram-se num comprido banco de bambu, à sombra de um matagal de altos loureiros. A luz do sol escorregava pelas folhas lustrosas. Na relva estremeciam os malmequeres brancos.
Após breve silêncio, Lord Henry puxou do relógio.
 Tenho de me ir embora, Basil – murmurou –, mas antes de ir, quero que responda à pergunta que lhe fiz há instantes.
— Que pergunta? – volveu o pintor, de olhos fixos no chão.

 Sabe muito bem qual é.

— Não, não sei, Harry.
— Então digo-lha já. Quero que me explique porque não quer expor o retrato de Dorian Gray. Quero saber o verdadeiro motivo.

 Mas eu disse-lhe o verdadeiro motivo.
— Não, não disse. O que me disse foi que havia nele demasiado de si mesmo. Ora, isso é uma grande infantilidade.
— Harry – disse Basil Hallward, olhando-o cara a cara –, todo o retrato pintado com sentimento é um retrato do artista, e não do modelo. O modelo é apenas o acidente, o pretexto. O pintor não o revela a ele, o pintor é que se revela a si mesmo na tela colorida. O motivo por que não exponho este quadro é o medo de que eu tenha revelado nele o segredo da minha alma.
Lord Henry desatou a rir.

— E que segredo é esse?
 – Vou contar-lhe – disse Hallward, mas notava-se-lhe no rosto uma certa perplexidade.

— Estou ansioso por saber –  continuou o companheiro, olhando-o de relance.

— Ora, Harry, há muito pouco que contar – respondeu o pintor –, e receio que você nem chegue a entender. Talvez nem chegue a acreditar.

Lord Henry sorriu e, debruçando-se, arrancou da relva um malmequer de pétalas rosadas e pôs-se a examiná-lo.

— Tenho absoluta certeza de que vou entender – retorquiu ele, olhando atentamente o pequeno disco dourado de penas brancas –, e, no que respeita a acreditar, sou capaz de acreditar em qualquer coisa, contanto que seja absolutamente inacreditável. [ï p. 7]
O vento sacudiu das árvores algumas flores, e os pesados lilases, com seus cachos de estrelas, balouçaram no ar lânguido. Junto ao muro, uma cigarra cantava a sua estrídula cegarrega, e, como um fio azul, passou uma delicada libelinha levada pelas asas esfumadas e transparentes. Lord Henry tinha a sensação de ouvir o bater do coração de Basil Hallward e interrogou-se sobre o que iria acontecer.
— A história é simplesmente esta - disse o pintor, passado algum tempo. - Há dois meses, fui a uma recepção em casa de Lady Brandon. Você sabe que nós, pobres artistas, temos de nos mostrar, de vez em quando, à sociedade, para fazer lembrar ao público que não somos selvagens. Como você uma vez me disse, de fraque e laço branco qualquer pessoa, até um corretor da Bolsa, pode ganhar a reputação de civilizado. Bem, uns dez minutos depois de ter estado a conversar com viúvas cheias de títulos de nobreza e nada discretas no trajar, e com académicos enfadonhos, apercebi-me subitamente de que estava alguém a olhar para mim. Virei-me e vi Dorian Gray pela primeira vez. Quando os nossos olhos se encontraram, senti que empalidecia. Apoderou-se de mim uma estranha sensação de terror. Sabia que tinha deparado com alguém de personalidade tão fascinante que, se eu o permitisse, iria absorver todo o meu ser, toda a minha alma, a minha própria arte. Não queria nenhuma influência externa na minha vida. Você sabe bem, Harry, que sou, por temperamento, independente. Fui sempre senhor de mim mesmo, pelo menos sempre o fora até encontrar Dorian Gray. Então... nem sei explicar-lhe o que se passou. Era como se alguma coisa me dissesse que me aproximava de uma crise terrível. Tinha a estranha sensação de que o destino me reservava intensas alegrias e intenso sofrimento. Fiquei atemorizado e voltei- me para abandonar a sala. Não foi por razões de consciência que o fiz: foi uma espécie de cobardia. Não me pertence, pois, o mérito desta tentativa de fuga.
— A consciência e a cobardia são de facto a mesma coisa, Basil. A consciência é a marca comercial da firma. Mais nada.
— Não acredito, Harry, e creio que você também não. Contudo, fosse qual fosse o motivo – orgulhoso como eu era, poderá ter sido por orgulho –, consegui encaminhar-me para a porta. Mas, evidentemente, deparei com Lady Brandon. "Não pode deixar-nos tão cedo, Mr. Hallward!", gritou ela. Você conhece-lhe aquela voz particularmente esganiçada?
— Conheço. Ela é em tudo como um pavão, excepto na beleza – disse Lord Henry, desfazendo o malmequer com os dedos longos e nervosos.
— Não pude ver-me livre dela. Apresentou-me a gente da Realeza, e a pessoas de estrelas e jarreteiras, e a damas idosas de tiaras gigantescas e narizes de papagaio. Referia-se a mim como o seu queridíssimo amigo. Tinha-a encontrado só uma vez, mas cismou que havia de me tratar como uma celebridade. Creio que na altura um quadro meu obteve grande êxito, pelo menos chegou a ser muito falado nos jornais, o que, no século XIX, é a medida-padrão da imortalidade... De repente, encontrei-me frente a frente com o jovem, cuja personalidade me perturbara de modo tão particular. Estávamos muito juntos um do outro, quase nos tocávamos. Os nossos olhos voltaram a encontrar-se. Sei que fui muito irreflectido ao pedir a Lady Brandon que me apresentasse a ele. Talvez não tenha sido assim tão irreflectido, afinal. Era uma coisa inevitável. Acabaríamos por falar um com o outro, mesmo sem apresentações. Tenho a certeza. Dorian chegou a dizer-mo mais tarde. Também ele sentiu que estava predestinado que nos havíamos de conhecer. [ï p. 8]
— E como descreveu Lady Brandon esse jovem admirável? – perguntou o amigo. – Sei que ela adora fazer uma breve biografia de cada um dos seus convidados. Recordo uma ocasião em que me apresentou a um cavalheiro idoso, truculento, cara vermelha e coberto de condecorações, então, com uma voz tão sibilante que deve ter sido perfeitamente audível para todas as pessoas presentes na sala, ela começou a segredar-me ao ouvido, e num tom trágico, os pormenores mais assombrosos. Resolvi fugir. Gosto de ser eu a descobrir as pessoas. Lady Brandon, porém, trata os seus convidados exactamente como um leiloeiro trata a sua mercadoria. Ou os descreve minuciosamente, ou diz tudo acerca deles, excepto o que queremos saber.
— Pobre Lady Brandon! Está a ser muito severo com ela, Harry! - comentou Hallward, um pouco distraído.
— Meu caro amigo, ela tentou abrir uma sala de recepções, e o que conseguiu foi abrir um restaurante. Como poderia sentir admiração por ela? Mas, afinal, o que lhe disse de Dorian Gray?
— Ah, coisas como "Rapaz encantador... eu e sua pobre mãe éramos absolutamente inseparáveis. Esqueci completamente o que ele faz... parece-me que não faz nada... ah, sim, toca piano... ou é violino, meu querido Mr. Gray?" Nem ele nem eu pudemos deixar de rir, e ficámos logo amigos.
— O riso não é nada um mau começo para uma amizade, e é de longe o seu melhor final - disse o jovem lorde, arrancando outro malmequer.
Hallward abanou a cabeça, discordando.
— Você não sabe o que é a amizade, Harry – murmurou ele –, nem mesmo a inimizade. Você gosta de toda a gente, o que significa que todos Lhe são indiferentes.
— É muito injusto comigo! – exclamou Lord Henry, puxando o chapéu para trás e erguendo o olhar para as nuvenzinhas de verão que, como meada de seda branca já desfeita, flutuavam pelo vazio azul-turquesa do céu. – Sim, tremendamente injusto. Eu estabeleço uma norma para diferenciar bem as pessoas. Escolho os amigos pela beleza, os conhecidos pelas qualidades de carácter, e os inimigos pelas de inteligência. Todo o cuidado é pouco na escolha dos inimigos. Não tenho um único que seja estúpido. São todos homens de capacidade intelectual e, por conseguinte, todos me apreciam. Será isto vaidade? Talvez seja um pouco.
— Talvez, Harry. Mas, segundo a sua classificação, eu devo ser um simples conhecido.
 Meu velho, você é muito mais do que um conhecido.

 E muito menos do que um amigo. Uma espécie de irmão.

  Ora, os irmãos! Os irmãos pouco me importam. O meu irmão mais velho nunca mais morre, enquanto os mais novos parecem não fazer outra coisa.
— Harry! – protestou Hallw ard, de semblante carregado.
— Meu caro amigo, não estou a falar a sério. Mas não consigo deixar de detestar os meus parentes. Creio que se deve ao facto de nenhum de nós poder suportar ver nos outros os próprios defeitos. Apoio inteiramente a indignação que a democracia inglesa manifesta contra aquilo a que chama os vícios das classes superiores. As grandes massas acham que a embriaguez, a estupidez e a imoralidade devem ser exclusivamente propriedade sua, e que se algum de nós faz figura de parvo é como se tivesse ido caçar na sua coutada. Quando o pobre do Southwark foi a tribunal por causa do processo de [ï p. 9] divórcio, a indignação dessa gente foi estrondosa. E, todavia, não me parece que dez por cento do proletariado viva decentemente.
— Não concordo com uma única palavra que acaba de proferir e, além do mais, Harry, tenho a certeza de que nem você mesmo concorda.
Lord Henry cofiou a barba castanha e, com a ponta da bengala de ébano ornamentada com borlas, bateu na biqueira da bota de verniz preto.
—  Você é tipicamente inglês, Basil! Já é a segunda vez que faz semelhante observação. Se expomos uma ideia a um inglês genuíno, o que é sempre uma grande imprudência, nunca lhe ocorre pensar se a ideia é correta ou errada. A única coisa que considera importante é saber se acreditamos na ideia por nós exposta. Ora o valor de uma ideia não tem nada que ver com a sinceridade da pessoa que a expressa. Na realidade, existem fortes probabilidades de que quanto mais insincero for o homem, mais puramente intelectual é a ideia, visto que, nessas circunstâncias, ela não será colorida pelas suas necessidades, nem desejos, nem preconceitos. Contudo, não pretendo discutir consigo política, sociologia ou metafísica. Gosto mais das pessoas do que dos princípios e, mais que tudo no mundo, gosto de pessoas sem princípios. Mas, meu caro, conte-me mais coisas acerca de Mr. Dorian Gray. Com que frequência costuma vê-lo?
— Todos os dias. Não podia sentir-me feliz se não o visse todos os dias. Ele é-me absolutamente necessário.
— Que extraordinário! Eu supunha que você não se interessava por mais nada que não fosse a sua arte.
— Agora é ele toda a minha arte – reconheceu o pintor, gravemente. –Às vezes penso, Harry, que há apenas duas eras realmente importantes na história do mundo. A primeira é o aparecimento de um novo meio para a arte, e a segunda é o aparecimento de uma nova personalidade também para a arte. O que foi para os venezianos a invenção da pintura a óleo, o rosto de Antínoo para a escultura grega tardia, e o que será um dia para mim o rosto de Dorian Gray. E não é apenas por ser ele o tema da minha pintura, e dos meus desenhos, e dos meus esboços. Evidentemente que fiz tudo isso. Mas, para mim, ele significa muito mais do que um modelo. Isto não quer dizer que me sinta insatisfeito com o que fiz dele, ou que a sua beleza seja de tal ordem que a Arte não pode exprimi-la. Não há nada que a Arte não possa exprimir, e reconheço que todo o trabalho que realizei desde que conheci Dorian Gray é um trabalho de qualidade, é a melhor obra da minha vida. Mas, é curioso que - será que você me vai compreender? – a personalidade dele sugeriu-me uma forma inteiramente nova em arte, um estilo inteiramente novo. Vejo as coisas e penso nelas de maneira diferente. Posso agora recriar a vida de um modo que me estava oculto. Um sonho da forma em dias de pensamento., Quem disse isto? Não me recordo. Mas é precisamente o que Dorian Gray tem sido para mim. A simples presença física deste rapaz - para mim não passa de um rapaz, embora tenha mais de vinte anos -, a sua simples presença física... Ah, mas será que você compreende o que tudo isto significa? Inconscientemente, ele define-me uma nova escola, uma escola que há de conter toda a paixão do espírito romântico, toda a perfeição do espírito grego. A harmonia da alma e do corpo... quão sublime é tudo isso: Loucos que somos, separámos o corpo e a alma, e inventámos um realismo grosseiro, uma idealidade vazia. Harry, se você ao menos soubesse o que Dorian Gray representa para mim! Lembra-se daquela minha paisagem pela qual Agnes me ofereceu um preço elevadíssimo, mas de que eu não quis separar-me? É uma das coisas melhores que fiz. E [ï p. 10] sabe porquê? Porque enquanto a pintava, Dorian Gray estava ao meu lado. Uma emanação subtil passava dele para mim, e, pela primeira vez na vida, vi num bosque vulgar a magia que sempre procurei e que nunca encontrara.
— Mas, Basil, isso é extraordinário! Preciso de ver Dorian Gray.
Hallward levantou-se do banco e começou a passear pelo jardim. Passado algum tempo, aproximou-se.
— Harry, Dorian Gray representa para mim unicamente um motivo de arte. Você poderá não ver nele nada de especial. Eu vejo tudo. A sua presença na minha obra não é menor quando não se encontra nela a sua imagem. Como já afirmei, ele é uma sugestão de um novo estilo. Descubro-o nas curvas de certas linhas, na beleza e nas subtilezas de certas cores. Nada mais.
—  E então por que não expõe o seu retrato?
— Porque, involuntariamente, pus nele um pouco da expressão desta singular idolatria mística, de que, evidentemente, nunca me interessou falar- lhe. Ele não sabe nada disto. Nem nunca saberá. O público, porém, poderia descobrir, e eu não quero desnudar a minha alma à sua curiosidade grosseira. Nunca sujeitarei o meu coração a essa bisbilhotice microscópica. Há muito de mim mesmo nesta obra, Harry... Demasiado!
— Os poetas não são tão escrupulosos como você. Sabem que a paixão lhes é muito útil como tema publicável. Atualmente, um coração destroçado faz aumentar o número de edições.
— Odeio-os por isso mesmo – exclamou Hallward. – Um artista deve criar coisas belas, mas sem que nelas ponha seja o que for da sua vida pessoal. Vivemos numa época em que os homens tratam a arte como se devesse ser um género autobiográfico. Perdemos o sentido abstracto da beleza. Um dia hei de mostrá-la ao mundo, e, por isso, o mundo jamais verá o meu retrato de Dorian Gray.
— Creio que você não tem razão, Basil. Mas não quero discutir consigo. Só os intelectualmente perdidos é que discutem. Diga-me, Dorian Gray gosta muito de si?
O pintor ficou uns instantes a pensar.
— Ele gosta de mim – respondeu, após uma pausa –, sei que gosta de mim. É claro que costumo lisonjeá-lo de uma maneira horrível. Tenho um estranho prazer em dizer-lhe certas coisas, mesmo sabendo que vou arrepender-me de as ter dito. Em regra, ele é encantador comigo, e ficamos no estúdio a falar de mil e uma coisas. Às vezes, porém, ele é terrivelmente irrefletido e parece ter um enorme prazer em me fazer sofrer. E então, Harry, sinto que entreguei toda a minha alma a alguém que a trata como se fosse uma flor para colocar na lapela, um ornamento para deleite da sua vaidade, um enfeite para um dia de Verão.
— Os dias de Verão, Basil, tendem a alongar-se – murmurou Lord Henry. – Talvez você se canse primeiro do que ele. É triste pensar nisso, mas não há dúvida de que o Génio dura mais que a Beleza. E isto explica o facto de nos esforçarmos tanto para nos cultivarmos de modo tão exagerado. Na luta feroz pela existência, queremos possuir algo de duradouro e, por isso, atafulhamos as nossas mentes de inutilidades e factos, na esperança absurda de conservar o nosso lugar. O homem bem informado faz parte do ideal moderno. E a mente do homem bem informado é uma coisa horrível. Assemelha-se a uma loja de bricabraque, repleta de monos e pó, onde tudo está marcado com um preço superior ao seu real valor. Mesmo assim, creio que você será o primeiro a cansar-se. Há de chegar o dia em que, ao olhar o seu amigo, vai achá-lo com [ï p. 11] traços menos corretos, ou não vai gostar da tonalidade do rosto, ou de qualquer outra coisa. No seu íntimo, você irá censurá-lo amargamente, e pensará muito a sério que ele teve consigo um comportamento incorreto. Quando ele voltar a aparecer-lhe, irá recebê-lo com total frieza e indiferença. O que será lamentável, pois você passa a ser uma pessoa diferente. O que acaba de me contar é uma fantasia romântica – poderia chamar-se mesmo um romance de arte -, e o pior em qualquer aventura romântica é que ela nos deixa tão pouco românticos.
— Não fale assim, Harry. Enquanto viver, serei dominado pela personalidade de Dorian Gray. Você não pode sentir o que eu sinto. Você é muito inconstante.
— Ah, meu caro Basil, é por isso mesmo que o posso sentir. Os que são fiéis conhecem apenas o lado trivial do amor, os infiéis são precisamente aqueles que conhecem o seu lado trágico.
E Lord Henry acendeu um fósforo numa delicada caixa de prata, e começou a fumar um cigarro com um ar convencido e satisfeito, como se tivesse resumido o mundo numa frase.
Ouvia-se a chilreada dos pardais por entre o verde lacado das folhas de hera, e as sombras azuladas das nuvens perseguiam-se umas às outras pelo relvado como andorinhas. Que aprazível estava o jardim! E como eram deliciosas as emoções dos outros! Pareciam-lhe muito mais deliciosas do que as ideias. A nossa alma e as paixões dos nossos amigos - eis as coisas fascinantes da vida - Imaginava, intimamente divertido, o almoço fastidioso a que faltara, por ter ficado tanto tempo com Basil Hallward. Se tivesse ido a casa de sua tia, iria com certeza encontrar Lord Hoodbody-, e toda a conversa teria andado à volta de alimento para os pobres e da necessidade de casas- modelo. Cada classe teria pregado a importância dessas virtudes, para a prática das quais não havia necessidade nas suas vidas. Os ricos teriam falado sobre o valor da poupança, e os ociosos teriam perorado com eloquência sobre a dignidade do trabalho. Como era agradável ter-se livrado de tudo isso!
Ao pensar em sua tia, aconteceu-lhe de súbito uma ideia, e dirigiu-se a Hallward.
— Meu prezado amigo, lembrei-me mesmo agora...
— Lembrou-se de quê, Harry? – De onde ouvi o nome de Dorian Gray.
— Onde foi? – perguntou Hallward, franzindo levemente as sobrancelhas.

— Não faça essa cara tão zangada, Basil. Foi em casa de minha tia, Lady Agatha. Ela contou-me que descobrira um jovem maravilhoso que estava disposto a ajudá-la no East End, e disse que o nome dele era Dorian Gray. Mas devo dizer-lhe que ela nunca falou da sua beleza. As mulheres não apreciam a beleza... pelo menos, as mulheres boazinhas. O que ela me disse foi que ele era muito sério e de uma índole maravilhosa. E logo imaginei uma criatura de óculos e cabelo escorrido, horrivelmente sardento, e com pés enormes. Que pena não ter sabido então que ele era o seu amigo.
— Ainda bem que não soube, Harry.


— Porquê?

 Não quero que se encontrem.
— Não quer que eu me encontre com ele?
— Não.
— Mr. Dorian Gray – está no atelier - anunciou o mordomo, aparecendo no jardim. [ï p. 12]
— Agora, terá mesmo de me apresentar – exclamou, rindo, Lord Henry.
O pintor voltou-se para o criado, que continuava à espera, pestanejando à luz do sol.
— Peça a Mr. Gray o favor de esperar, Parker. Não vou demorar muito.
O homem fez uma vénia e retirou-se. Então Basil Hallward olhou para Lord Henry.
— Dorian Gray é o meu mais querido amigo.Tem uma índole simples e bela. O que a sua tia disse dele é absolutamente correto. Não o estrague. Não tente influenciá-lo. A sua influência sobre ele seria nociva. O mundo é vasto e tem muitas pessoas maravilhosas. Não me roube a única pessoa que empresta à minha arte o encanto que possui, a minha vida como artista depende dele. Veja bem, Harry, confio em si.
Falava muito devagar, como se arrancasse as palavras quase a contragosto.
— Não diga disparates! – acudiu Lord Henry a sorrir, e, pegando-lhe num braço, quase o arrastou para dentro de casa.


Edição (digital) utilizada:
O retrato de Dorian Gray. Trad. Maria de Lourdes Sousa Ruivo. Linda-a-Velha : Abril Controljornal, 2000.