5 de abril de 2019

O conto da Ilha Desconhecida, de José Saramago






"Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. Situada num tempo e num espaço indeterminados, a história do homem que queria um barco para ir à procura da ilha desconhecida promete ser a história de todos os homens que lutam contra as convenções em busca dos seus sonhos e de si próprios." (da sinopse)






José Saramago acabou de escrever O Conto da Ilha Desconhecida a 27 de março de 1997,  ano da sua primeira edição, facto que deixou registado nos Cadernos de Lanzarote, no volume V:

          Terminei hoje «O conto da Ilha Desconhecida», com o que deverá ficar mais ou menos satisfeito (espero bem que sim) o pedido de Simoneta Luz Afonso, que queria que eu lhe escrevesse algo sobre o tema «Mitos», destinado ao Pavilhão de Portugal da Expo 98, de que ela é a principal responsável… Em Uma Aventura Inquietante de José Rodrigues Migueis há um capítulo chamado «Onde um leigo afronta a ciência», que comecei por conhecer isoladamente, não sei quando nem onde (talvez na revista Ver e Crer, com o título «Inocente entre os doutores», e que sempre recordo quando me aparece alguém a convidar-me a fazer algo para que não tenho preparação. Tento desfazer o equívoco, dissuadir quem tanto parece confiar num imaginário ecletismo dos meus dotes. Não foi assim com Simoneta Luz Afonso. Insistiu tanto que não tive outra saída que aceitar um trabalho que me iria dar água pela barba. Levei meses a encontrar uma porta de saída que ao mesmo tempo me servisse de porta de entrada, e finalmente acabei por usar aquela por onde entro e saio todos os dias: a porta da ficção. Destinando-se o conto a publicação em livro, não posso nem devo transcrevê-lo para aqui (seria nada mesmo que concorrência desleal), mas não resisto à tentação de copiar-lhe o primeiro parágrafo, onde logo fica reduzida a cacos a erudita gravidade do Mito:         

«Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era a das petições. 
Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios (entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez que ouvia alguém a chamar à porta das petições fingia-se desentendido, e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança (as pessoas começavam a murmurar, Que rei temos nós, que não atende), é que dava ordem ao primeiro-secretário para ir saber o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar.
Então, o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual, não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e perguntava pela frincha, Que é que tu queres. 
O suplicante dizia ao que vinha, isto é, pedia o que tinha a pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento fizesse, de um em um, o caminho ao contrário, até chegar ao rei. 
Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente, até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não conforme estivesse de maré.»