“Sermão de Santo António aos peixes” (1654)
do Padre António Vieira
Exórdio - Capítulo 1
Neste primeiro capítulo, mais conhecido por exórdio (a introdução), o Padre António Vieira expõe o tema e as
questões centrais que vai defender, bem como o plano estrutural do seu sermão.
Vieira, a partir do conceito predicável “Vós sois o
sal da terra”, em analogia com
“Santo António [que] foi sal da terra e foi sal do mar”, visa criticar a humanidade que
está cada vez mais corrupta. Quando ele sugere que a culpa se encontra no sal
refere-se aos pregadores que proferem uma coisa e depois agem de outra forma,
ou então afirma que a culpa se encontra na terra, referindo-se assim aos
ouvintes uma vez que estes não ligam às palavras da verdadeira doutrina.
Visto que o Padre António Vieira não obtinha os efeitos
desejados da sua pregação decidiu deixar de pregar aos homens e preferiu antes dirigir-se
aos peixes, tal como Santo António já o fizera.
No princípio Vieira vai realçar e apreciar as virtudes
dos peixes, mas em seguida irá apontar-lhes os defeitos de modo a tentar
corrigi-los.
Síntese:
Neste capítulo,
Vieira critica a humanidade, que está cada vez mais corrupta, e os pregadores que, havendo tantos, não conseguem alcançar os seus objetivos. Utiliza as
expressões “sal” para os pregadores e “terra” para os ouvintes. Exceção para
Santo António, que Vieira admira bastante e do qual aborda a história ocorrida com este em Arimino, onde pregava aos hereges e foi alvo da tentativa de apedrejamento
por parte destes.
Exposição
Capítulo II – Louvor das virtudes
dos peixes, em geral
Neste
capítulo serão criticados os homens por analogia com os
peixes, como está expresso nesta passagem irónica: “Ao menos têm os peixes duas
boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam”. Vieira deixa bem claro que este sermão é uma alegoria,
referindo-se frequentemente aos homens. Os peixes ora serão, metaforicamente, os índios ora os colonos.
Neste capítulo, pois, o pregador pretende repreender
os vícios dos homens, opostos às virtudes dos peixes.
Louvor
das virtudes, em geral :
- “ouvem e
não falam”;
- “vós fostes
os primeiros que Deus criou”;
- “e nas
provisões [...] os
primeiros nomeados foram os peixes”;
- “entre
todos os animais do mundo, os peixes são os mais e os maiores”;
- “aquela
obediência, com que chamados acudistes todos pela honra de vosso Criador e
Senhor”;
- “aquela
ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca do seu
servo António. [...] Os
homens perseguindo a António [...]
e no mesmo tempo os peixes [...]
acudindo a sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com
silêncio [...] o
que não entendiam."
- “só eles
entre todos os animais se não domam nem domesticam”
Síntese:
Vieira inicia a
exposição com uma pergunta retórica:
“Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes?” e de seguida indica a estrutura do sermão: “dividirei,
peixes, o vosso Sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as vossas
atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios” (ll. 23-24).
O resto do capítulo
é abordado por Vieira com as virtudes
gerais dos peixes.
Capítulo III – Louvor das
virtudes dos peixes, em particular
No capítulo III
(considerado por alguns, o 1º momento da confirmação), Vieira continua a elogiar os peixes, mas desta vez os seus louvores aos peixes
são individualizados, visam peixes em particular.
Vieira utiliza quatro tipo de
peixes para comprovar a relação entre o homem e o divino.
O Santo Peixe de Tobias, peixe bíblico, grande em
tamanho, possui
nas suas entranhas um fel que cura da cegueira e um coração que expulsa os
demónios («o fel era bom para curar da cegueira», «o coração para lançar fora os
demónios» ); representa
as virtudes
interiores, a bondade, e o
poder purificador da palavra de Deus.
A Rémora, peixe tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder,
quando se prende a um navio
tem força razoável para a segurar ou determinar o seu rumo («se se pega ao leme
de uma nau da Índia […] a prende e a amarra mais que as mesma âncoras, sem se
poder mover, nem ir por diante.»); expressa a força ou o poder da palavra dos
pregadores: a língua de S. António era uma rémora na terra – tinha força para dominar as
paixões humanas como a soberba, a vingança, a cobiça e a sensualidade (as
quatro naus do sermão).
O Torpedo origina descargas elétricas que acabam por fazer oscilar o
braço do pecador («Está o pescador
com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na
isca o torpedo, começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e
mais admirável efeito?»); simboliza o poder da palavra de Deus, em converter,
em fazer o ser humano arrepender-se.
O Quatro-olhos contém dois pares de olhos, uns para cima e outros
para baixo («e como têm inimigos
no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois
olhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e outros
dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes.»); simbolizam a visão, a
iluminação: o cristão tem o dever de tirar os olhos da vaidade terrena, olhando
para o céu, e sem esquecer o inferno.
Síntese
Todos estes elogios que o
Padre António Vieira tece aos peixes são o contraponto dos defeitos dos homens,
evidenciando assim os vícios destes.
Os quatro peixes, o Santo Peixe de Tobias, a rémora,
o torpedo e o quatro-olhos possuem características que na sua totalidade se podem
identificar com as principais virtudes de Santo António.
Capítulo IV – Repreensão dos
vícios dos peixes, em geral
Neste capítulo, Vieira repreende os peixes em geral,
criticando neles comportamentos condenáveis nos homens.
O pregador confirma a tese de que os homens se comem
uns aos outros, dando o exemplo dos peixes.
- «[...] é que vos comedes uns aos outros.»
- «Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos.»
- «Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos
pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem
mil, para um só grande.»
Capítulo V – Repreensão dos
vícios dos peixes, em particular
Neste capítulo do sermão, o pregador censura quatro
criaturas marinhas em particular; estas simbolizam os pecados ou vícios humanos
condenáveis.
Os Roncadores, peixes pequenos e
que emitem um som grave, são sempre facilmente pescados e
apesar de serem pequenos têm muita língua («É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as
roncas do mar?»). Representam
a arrogância e o orgulhoso. Encontramos
esse comportamento em personagens como S. Pedro, Golias, Caifás e Pilatos, em
contraste com Santo António que
tinha saber e poder, mas não se vangloriava.
Os Pegadores, pequenos e que se
fixam a peixes grandes ou ao leme dos navios («Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade,
porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se
lhes pegam aos costados, que jamais os desferram.»). Representam o oportunismo, o parasitismo social e a
subserviência. Uma vez que vivem na dependência dos grandes e morrem com eles, Vieira
argumenta que os grandes morrem porque comeram, os pequenos morrem sem terem
comido. Na humanidade, encontramos os
seguidores de Herodes. Santo António «pegou-se» apenas a Cristo e seguiu-O.
Os Voadores, peixes de grandes
barbatanas que saltam para fora de água como se voassem.
Representam o defeito da presunção e da ambição desmedida e desse modo, porque não
se contentam com o seu elemento, são pescados como peixes e caçados como aves («Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para
peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? [...] Contentai-vos com o mar e com
nadar, e não queirais voar, pois sois peixes.») . Simão Mago e Ícaro exemplificam-no entre os homens.
Por contraste, Santo António
tinha sabedoria e poder, mas não se vangloriou.
O Polvo,
detentor de um «capelo»,
tentáculos, um corpo mole e podendo camuflar-se, é considerado um hipócrita e
traidor pois utiliza a capacidade mimética (varia
a sua coloração e a sua forma, de acordo com o meio em que se encontra) para atacar os peixes desprevenidos
(«E debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa [...] o dito polvo é o maior traidor do
mar.»). Entre os homens, encontramo-lo em Judas. Mais uma vez,
por contraste, Santo António foi
sincero e verdadeiro - nunca enganou.
O sermão é,pois,
todo ele feito de alegorias, simbolizando os vícios dos colonos do Brasil
("peixes grandes que comem os pequenos") em vários peixes: o roncador
(o orgulhoso), voador (o ambicioso), pegador (o parasita) e o polvo (o traidor,
mais traidor que o próprio Judas).
Peroração – capítulo VI
Neste capítulo, mais conhecido por peroração ou conclusão, o
pregador visa um desfecho forte, de modo a impressionar o auditório e levá-lo a
pôr em prática os conselhos recebidos.
O Orador diz não ter atingido o fim para que Deus o criou, ter inveja dos
peixes e estar a ofender a Deus. Em contraste, encontram-se os peixes que
atingem o fim para que foram criados e não ofendem a Deus.