“Sermão de Santo António aos peixes” (1654)
do Padre António Vieira
Compreensão/Interpretação 4 (p. 69) – cap. IV
Neste cap., Vieira repreende os peixes em geral, criticando neles
comportamentos condenáveis nos homens.
1. A frase “A primeira cousa que me desedifica, peixes,
de vós, é que vos comeis uns aos outros” (ll. 3-4) simboliza algo
semelhante na sociedade humana: os homens dominam, oprimem e exploram os seus semelhantes.
1.1. Os estudiosos de Vieira referem-se a esta prática
através do termo “antropofagia social”.
Neste contexto, a expressão significa que as práticas da opressão e da
exploração são metaforicamente atos de canibalismo porque os homens se
“alimentam” (subjugam, dominam) de outros homens para aumentar o seu poder e as suas riquezas.
2., 2.1 e 2.1.1. O problema é mais grave pois “os [peixes] grandes comem os pequenos”
(ll. 5-6) – Na sociedade humana, esse facto significa metaforicamente que os homens
mais poderosos e ricos dominam e subjugam os mais vulneráveis e os
desfavorecidos. É mais grave que
assim seja porque – como se dominam os mais frágeis – a injustiça e a desumanidade de quem
oprime e explora são maiores.
2.2. Exemplos dos nossos dias em que “os grandes comem os pequenos”:
- Os empresários sem escrúpulos explorarem os
trabalhadores,
- Alguns políticos serem prepotentes,
- Uma maioria étnica/religiosa/etc. discriminar os
indivíduos de outras etnias, religiões, etc.
3. Relação estabelecida entre
as críticas formuladas por Santo Agostinho aos peixes e as enunciadas por
Vieira (ll. 14-17): Santo Agostinho, para ensinar os homens, através da sua pregação, aludiu ao
exemplo dos peixes. Vieira fará o oposto: pregará aos peixes e ilustrará os
seus ensinamentos com casos de homens.
4. Na frase “Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos
outros? Muito maior açougue[1] é o de
cá, muito mais se comem os brancos.” (ll. 21-22), estabelece-se uma
comparação em que se criticam os homens brancos: embora os Tapuias sejam
canibais, não comem tantos homens como aqueles que, metaforicamente, são
devorados (oprimidos) na carnificina que existe entre os brancos.
5. As formas verbais alusivas
à visão (ll. 14-28) como «mostrou-lhos», «vejais», «olhai», «olhar» e «vedes»,
permitem representar os factos de modo mais vivo, acentuado o apelo, visando
confrontar os ouvintes com essa realidade.
6. Resumindo o que acontece
com um homem que acaba de morrer (ll. 29-37), podemos dizer que, de forma
insensível, as outras pessoas, incluindo a própria mulher, esquecem-no e
procuram apoderar-se dos bens do defunto.
6.1. O uso do paralelismo sintático das orações que
se iniciam pela forma verbal “come-o” e as suas variantes (ll. 30-37) permite
dar conta das inúmeras pessoas que, de forma voraz, se procuram apoderar das posses
de um homem que acaba de morrer; acentua, pois, a quantidade e a voracidade dos
predadores.
7. Nas linhas 44-50,
censura-se o sistema judicial: se um cidadão tiver assuntos a resolver em
tribunal, verá que todos os agentes judiciais partciparão na dilapidação dos
seus bens.
[…]
8.2. Nas linhas 76-78, a gradação (“multem”, “defraudem”,
“comam, traguem e devorem”) dá conta do processo crescente e avassalador da
exploração e da opressão dos mais fracos.
[…]
12. No fim
deste capítulo, Santo António serve de exemplo porque não sofreu da ignorância
e da vaidade dos outros e não caiu nos erros destes. Na verdade, em lugar de
«ser pescado», foi ele que «pescou» vários fiéis para pôr no caminho da
virtude.