27 de novembro de 2011

Temas e motivos da poesia barroca


 


O mundo da literatura barroca portuguesa revela aspetos contrastantes, num jogo constante de claro-escuro:
nos textos literários desta época encontramos, lado a lado, faces contrastantes ou contraditórias.

Meditação desiludida sobre a vida humana/valorização do gozo terreno ainda que efémero
A espiritualidade e a sublimação/a materialidade aprendida pelos sentidos
O amor idealizado e mesurado/o amor sensual e licencioso
O retrato elogioso/o retrato caricatural
Literatura/contraliteratura
Tragédia/comédia
Claro-escuro
 

Temas e motivos da poesia barroca

1.      O tempo

  • «[…] o mundo barroco é dominado pela figura do tempo, pela visão obsessiva do seu fluir e do seu império sobre os homens e sobre as coisas. Esta consciência aguda do tempo que foge constitui assim o núcleo de uma constelação temática – a efemeridade, a transitoriedade, o desengano – e confere unidade semântica a motivos tão diversos como a rosa, o relógio, as ruínas, a morte. A consciência do tempo que passa arrastando o homem no seu fluir (expressa na literatura de todos os tempos) surge-nos como uma obsessão na poesia barroca.» [Pires, p. 33]
  • A efemeridade: «A angústia perante o fluir do tempo resulta da consciência de que o homem é arrastado nesse movimento e que, na perspetiva humana, esse fluir é caminhar para a morte. Vida efémera, portanto, a do homem, inevitavelmente sob o signo do tempo. Multiplicam-se as metáforas que apresentam essa efemeridade. Acumulam-se as comparações com seres igualmente efémeros, de breve duração: a rosa […], a luz que um sopro extingue, o navio que a tormenta destrói, o edifício arruinado. Visões de beleza, brilho ou grandeza que rapidamente desembocam na destruição.» [Pires, p. 34. V. Plazenet, pp. 36-37: «La flemme et la bulle: la vie fugitive; la séduction de l’éphémère».]
  • A inconstância (ou transitoriedade): «Tudo passa, nada é estável. A consciência desta instabilidade impede a apreensão da realidade das coisas. De facto, como dizer a essência daquilo que por natureza se muda a cada instante? Tanto mais que essa mudança corresponde à transformação das coisas no seu contrário. No plano da expressão poética, a perceção desta mudança exprime-se pela identificação paradoxal dos contrastes. Vida e morte deixam de ser opostos para serem sinónimos, pois que a vida é gérmen da morte, cada momento da vida é um avanço da morte.» [Pires, p. 34. V. Plazenet, pp.37-38: «L’eau: perpetum mobile; le plus fascinant des miroirs»]
- O homem é Proteu: «Divinité marine, Protée a le pouvoir, comme l’élément dans lequel il se meut, de revêtir des formes différents. […] Il est une image de l’homme changeant dans cesse, sous l’effet du temps, des circonstances, des individus avec lesquels il se trouve.» [Plazenet, p. 30]
  • A vaidade do mundo: «L’inconstance révèle à l’homme sa profonde vanité. […] Instabilité douloureuse, l’inconstance rappelle chacun au sentiment de son néant. Incapable de reconnaître la main de Dieu dans l’incohérence de sa situation, l’homme se voit abandonné à la fortune.» [Plazenet, p. 31] Nos textos de intenção religiosa (e portanto moralizadores) pretende-se «détourner l’homme de ses passions et du monde, de lui inspirer dans l’effroi le désir de se convertir et de faire pénitence.» [idem]
  • A morte: «Tudo passa, caminhando para a destruição. Consciente disso, o homem barroco fez da morte tema dominante do seu pensar, do seu escrever. A presença da morte ocorre a cada passo na poesia barroca. A morte de alguém (alguém ilustre pela sua beleza, pela sua sabedoria, pelo seu poder, pela sua elevada categoria social) é dos motivos mais frequentemente tratados e utilizados como ponto de partida de meditação sobre a efemeridade dos bens terrenos. Mas na sociedade barroca a morte constitui-se em espetáculo. As pompas fúnebres, a grandiosidade dos monumentos tumulares são ainda formas de ostentação de grandeza, ao mesmo tempo que pretendem dizer o nada dessa grandeza. Há um comprazimento no fúnebre, no macabro, na representação concreta da morte; e há simultaneamente a transformação de tudo isso em pompa, em espetáculo, em exibição esplendorosa. A poesia revela esta associação de elementos contraditórios.» [Pires, pp.34-35. V. Plazenet, pp.34-36: «la mort]

2. A ilusão (La vida es sueño; mundus est fabula):

  • «la représentation de métamorphoses en série invite à considérer que la réalité est une succession d’apparences sans plus de fondement les unes que les autres. Elle constitue à chaque moment une illusion.» [Plazenet, pp. 28-29]
  • «O homem passa pela vida iludido pela aparência das coisas: julga-as reais e são ilusões que se desfazem em nada. Como as imagens virtuais que o espelho nos devolve…. Ou como os sucessos vividos em sonho… Onde a realidade dessas imagens? O sonho e o espelho, mostrando a ilusão e a fabilidade do homem, são novos motivos fomentadores da quase constante lição de desengano que esta poesia ensina» [Pires, p.36]

3. O disfarce (fingimento)

  • «Le déguisement baroque est omniprésent et revêt toutes les formes. Travestissement ludique, dissimulation d’identité, changement de sexe, […], il est un ressort fondamentale de la littérature aussi bien narrative que dramatique.» [Plazenet, p. 32] O disfarce «manifeste l’aptitude de tout individu à devenir autre. Le déterminisme sexuel lui-même ne résiste pas à ce polymorphisme. […] Se déguiser est le moyen d’accéder à une face cachée des individus ou à une vérité qui ne serait pas relevé sans le détour de l’altérité.» [idem]
  • O anulamento do eu («L’évanescence du moi») e mesmo a loucura: «à trop bien jouer autrui, l’homme ne sait plus qui il est lui-même. Son moi lui échappe.» [idem]. «Le déguisement, quand il vire à la confusion d’identité, touche à la folie. (…) La folie, à considérer sa fréquence, est presque un état normal di sujet baroque.» [ibidem, p.33]
  • O homem e o comediante: «La marge est mince entre simulation et théâtre. Le personnage déguise confesse avoir du plaisir à jouer la comédie aux autres. Aussi la comédie et le comédien envahissent-ils les œuvres de la période. (…) L’illusion au cœur de la réalité. La littérature baroque insiste sur les figures du dédoublement pour mieux représenter le caractère illusoire de la réalité matérielle. Ses motifs ressortissent au jeu, mais ce dernier est grave. Il engage une conception de l’existence.» [idem]

4. O amor e a imagem da mulher

  • «Embora o amor não seja dos temas mais frequentes da poesia barroca, não deixam de estar presentes os sofrimentos amorosos: a dor da ausência, do amor não correspondido, da saudade do bem passado. As setas do Cupido continuam a fazer sangrar corações de poetas que choram… recorrendo aos consagrados moldes da poesia petrarquista.
  • «A imagem da mulher herdada desta linha poética permanece ainda. De inovador, como resultado da apropriação dessa herança literária pelo espírito barroco, surge-nos o acentuar hiperbólico dos traços, a intensificação dos elementos visuais, a proliferação desmedida da metáfora descritiva. Surge sobretudo, de acordo com o gosto barroco pelos contrastes, o reverso da medalha: a imagem de um amor sensual, traduzida numa linguagem realista, quando não mesmo obscena, e a imagem da mulher despida de fatores idealizantes, na sua realidade prosaica.
  • «Muitos dos poemas de amor da época barroca funcionam ainda como reflexo de uma realidade social sua contemporânea – os chamados amores freiráticos, ou seja, as relações amorosas centradas nos conventos (muito numerosos), e que originaram uma abundante produção poética.» [Pires, pp. 36-37]

5. A religiosidade

  • Relativamente frequentes, os poemas que tratam a atitude do homem perante Deus revelam igualmente as tendências mais marcantes do estilo da época: “o gosto lúdico da expressão paradoxal, da associação de contrários, expande-se nestes poemas ao nascimento de Cristo e à sua paixão, comprazendo-se geralmente o poeta em acentuar a convergência de grandeza e humilhação, poder real e fraqueza aparente, divindade e humanidade de Cristo nestes momentos.” [Pires, p.37] Deste modo, “a exibição do trabalho retórico domina muitos destes poemas, sobrepondo-se à expressão da emoção religiosa.” [p. 38]
  • O homem como objecto do amor de Cristo: “O homem apresenta-se geralmente como pecador, numa posição de dependência total em relação ao amor e misericordia de Deus.” [ibidem, p. 37] “[…] homem atormentado pela consciência do pecado, pelo arrependimento, pelo desengano em busca de refúgio na misericórdia de Deus […]” [ibidem, p. 38]
  • Expressão ambígua da emoção amorosa: “A poesia religiosa da época barroca com frequência confunde as águas da religiosidade e do erotismo. Amor profano e amor divino são cantados em termos idênticos, desde a consagrada utilização das imagens do Cântico dos Canticos para exprimir a união da alma com Deus, até à caracterização de Cristo com os traços de um Cupido por cujas setas o poeta se declara atingido. Os numerosos poemas de Violante do Céu ao nascimento de Cristo são exemplos elucidativos desta tendência.” [ibidem, p.38]

6. Temas jocosos

  • «O poeta barroco percebeu que toda a realidade, por mais trágica ou sublime, tem a sua face grotesca e exibiu essa face em numerosos poemas em que o cómico é o ethos fundamental. O poeta barroco […] move-se nesse mundo de contrastes e assume na sua produção poética tanto o riso como as lagrimas. […]. O poeta barroco ri de tudo: de si próprio e dos outros, de defeitos físicos e morais, de costumes da sociedade, de carências materiais; ri de poetas e da própria poesia, de tópicos e de textos literários. E o seu riso é uma das vezes subtilmente irónico, outras alegremente galhofeiro, outras ainda chocarreiro e obsceno. É também, por vezes, um riso doloroso […]” [Pires, pp.39-40]


Bibliografia:

  1. PIRES, Maria Lucília Gonçalves (apres. crítica, selec., notas e sugestões para análise literária de –), Poetas do período barroco. Lisboa, Comunicação, 1985.
  2. PLAZENET, Laurence, La littérature baroque, Paris, Seuil, 2000.
Revista de Estudos Barrocos